compras

Estamos a assistir à queda do império mundial da adidas?

Ainda a recuperar de um tsunami chamado Yeezy, levou uma estocada certeira da Nike — a norte-americana vai vestir a seleção alemã.
A gigante germânica sofreu um duro golpe.

É o fim de uma era. E uma vitória retumbante da Nike sobre a adidas. Após 77 anos de exclusividade, a Federação de Futebol da Alemanha (DFB, o acrónimo em alemão) anunciou que a partir de 2027 será patrocinada pela marca norte-americana. 

A direção da DFB justifica a decisão anunciada na passada quinta-feira (21 de março) como sendo “a melhor oferta financeira”, adianta a “Fortune”. As alíneas do acordo divulgadas pela imprensa alemã indicam que a Nike concordou em pagar cerca de 100 milhões de euros por ano para equipar as seleções germânicas dos vários escalões. Ou seja, o dobro dos 50 milhões desembolsados pela adidas.

O argumento “folha de Excel” da DFA está a ser estraçalhado pela classe política alemã que acusa a federação de “falta de patriotismo”. A primeira crítica partiu do ministro da economia, Robert Habeck, que elencou (surpreendentemente) motivos que a própria razão desconhece contra o negócio. 

“Mal consigo imaginar a camisola alemã sem as três listras”, evocou Habeck. “Para mim, a adidas e o preto-vermelho-dourado sempre estiveram entrelaçados. Juntos são um pedaço da identidade alemã.”

O ministro da saúde, Karl Lauterbach, também desdenhou os critérios puramente economicistas da DFA. “A adidas devia deixar de aparecer na camisola da seleção? Devia ser substituída por uma marca norte-americana? Penso que é uma decisão errada, na qual o comércio destrói uma tradição e parte do nossa casa”, escreveu no X.

A seleção nacional sempre jogou com as três listras da adidas, acrescentou o governador da Baviera, Markus Soeder, na mesma rede social. “Era algo tão indiscutível como a bola ser redonda e o jogo durar 90 minutos.

As reações emotivas têm uma justificação: o processo de transformação da Mannschaft (alcunha dos germânicos) numa máquina invencível é inseparável do surgimento e consolidação da adidas. 

“A história de sucesso começou em 1954, com a inesquecível vitória no Campeonato do Mundo, que voltou a dar confiança ao nosso país”, sublinhou Soeder.

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, o país enfrentou “uma travessia no deserto” em termos desportivos. Por um lado, estava em plena reconstrução; por outro, a comunidade desportiva internacional não estava propriamente inclinada a receber as equipas alemãs de braços abertos nas competições. 

Tudo mudou em 1954, quando a Alemanha venceu o seu primeiro Mundial, derrotando a Hungria, que somava quatros anos de vitórias consecutivas. Um dos responsáveis pela vitória terá sido Adolf ‘Adi’ Dassler, fundador da adidas e encarregado de equipar a seleção.

Dassler tinha fornecido umas chuteiras inovadoras aos jogadores — mais leves e com pitons amovíveis de alumínio — que funcionaram como uma arma secreta no relvado ensopado e enlameado do Wankdorf Stadium, em Berna (na Suíça), onde se disputou a final.

A vitória ajudou a alavancar o sucesso da adidas, marca que Adolf, conhecido como Adi, tinha fundado em 1949, após uma disputa fraterna. Os irmãos Dassler (Adolf e Rudolf) começaram a fabricar sapatilhas desportivas, na cozinha da mãe, em Herzogenaurach (perto de Nuremberga, na Alemanha) nos anos 20, antes da Primeira Guerra Mundial. 

Na Gebrüder Dassler Schuhfabrik (literalmente, fábrica de sapatos dos irmãos Dassler), assim se chamava a empresa que fundaram, desempenhavam funções distintas — Adolf desenvolvia os modelos e Rudolf era responsável pelas vendas.

A proficiência técnica de Adolf acabou por levar à rutura entre os dois. Apesar de ambos serem filiados no Partido Nazi, conseguiram convencer (ou conseguiu Adi, não é claro) o atleta Jesse Owens a usar umas novas sapatilhas da marca nas Olimpíadas de 1936.

O afro-americano acabou por ganhar quatro medalhas, desempenho que foi considerado uma humilhação nacional face à propaganda da suposta superioridade ariana. A “derrota dos simpatizantes nazis” catapultou a empresa: o modelo usado por Owens foi um sucesso de vendas. O êxito, porém, trouxe outros problemas e intensificou o atrito entre os irmãos, que até então permanecia latente. Segundo consta eram extremamente competitivos e as divergências crescentes entre as mulheres de ambos precipitaram a separação.

Jesse Owens adidas

Dividiram a empresa a meio e cada um seguiu o seu caminho. Adolf fundou a adidas e Rudolf criou a Puma, que acabaram por crescer em sentidos opostos. O perfil mais técnico de Adi colocou a marca na dianteira da inovação, tendo crescido no mercado desportivo (aposta que desembocou no acordo com a seleção alemã). A Puma, por seu lado, apostou na criação de modelos destinados a um público mais abrangente e com maior potencial comercial.

Os anos passaram, mas os perfis diferenciados de cada insígnia mantiveram-se alinhados com as premissas originais. A adidas floresceu com a criação de modelos pensados para modalidades como o futebol (com as Samba, desenhadas para os treinos em campos pelados), o ténis (Stan Smith), o andebol (adidas Spezial) ou o basquetebol (Superstar) — que se tornaram fenómenos transversais de vendas. 

O portfólio repleto de bestsellers permitiu à adidas conquistar e consolidar a posição de segunda marca desportiva mais vendida do mundo. Apesar do sucesso, quando se trata de uma competição, “o segundo é o primeiro dos últimos” — a atual líder do mercado é precisamente a Nike. E agora, a sua principal adversária acaba de lhe infligir uma derrota simbólica e sem precedentes.

A onda de consternação que varreu a Alemanha nos últimos dias é apenas o mais recente fenómeno do tsunami que abalou os alicerces da adidas — e que os especialistas no setor já acompanham há vários anos. 

Curiosamente, o primeiro choque de placas tectónicas também envolveu judeus e foi provocado por Kanye West. O epicentro foi registado a 20 de outubro de 2022, no podcast “Drink Champs”. “Posso dizer merdas antissemitas, a adidas não pode abandonar-me”, atirou o controverso artista.

A afirmação levou ao corte da lucrativa relação de West com a marca, que estava a ser pressionada para agir há semanas. O rapper, que mudou legalmente o nome para Ye em 2021, já tinha feito uma enxurrada de comentários anti-semitas nas redes sociais e noutras entrevistas quando soltou a provocação. 

A estratégia inicial da marca foi remeter-se ao silêncio, que acabou por interromper a 6 de outubro para declarar que a parceria com Ye “estava a ser avaliada”. As contas eram fáceis de fazer, mas os resultados não agradavam a ninguém

O acordo entre ambas as partes, assinado em 2013, era uma verdadeira galinha dos ovos de ouro. A adidas fabricava a linha Yeezy, com modelos tão caros como populares desenhados por Ye, e arrecadava entre quatro a oito por cento das vendas, segundo a estimativa efetuada pelo banco de investimento Cowen quando a polémica estalou. 

O rapper considerava-se intocável, mas errou os cálculos. Tudo somado, a parceria correspondia a uma parcela significativa dos seus rendimentos: representava 1,5 mil milhões do património líquido. Cinco dias após Ye ter ateado o rastilho, a 25 de outubro, a empresa optou por “matar a galinha” e removeu a carcaça da capoeira.

“A adidas não tolera o antissemitismo nem qualquer outro tipo de discurso de ódio. Os comentários e ações recentes de Ye são inaceitáveis, odiosos, perigosos. E violam os nossos valores de diversidade, inclusão, respeito mútuo e justiça”, declarou a empresa.  “A decisão tem um efeito imediato”, acrescentou. 

West deixou a lista dos mais ricos do mundo da “Forbes” e a marca começou a fazer o caminho das pedras. Com menos 250 milhões de euros de lucros e milhares de pares de Yeezy nos armazéns, o futuro imediato da adidas não seria um passeio no parque.

Meses depois, no início de 2023, a previsão dos resultados anuais feita pela empresa era sombria. O relatório estimava uma queda de 1,2 mil milhões de euros nas vendas e uma redução de 500 milhões no lucro operacional se não conseguisse escoar o restante stock de Yeezy. Já a revisão estratégica do negócio iria custar 200 milhões. Esta última estimativa foi a mais esmiuçada pela imprensa especializada. 

O problema da adidas estava a montante do dilúvio provocado por Ye e implicava uma mudança radical de rumo, defendiam várias publicações.  

O declínio nas vendas não se deve apenas à Yeezy”, adiantou a corretora financeira Bernstein, na sequência da análise que fez aos números avançados pela empresa. Provavelmente, teria de abandonar a produção de outras linhas para estancar as perdas, equacionou a corretora.

A apresentação de resultados que ocorreu a semana passada (13 de março) revelou que 2023 foi ainda mais negro que o previsto. A empresa alemã, que não registava prejuízos desde 1992 (há mais de 30 anos), declarou um prejuízo anual de 58 milhões de euros.

Apesar do desempenho negativo e de estimar uma perda de cinco por cento no mercado norte-americano, o CEO, Bjørn Gulden, afirmou estar otimista relativamente a 2024. Isto quando a impensável decisão da federação alemã de substituir a adidas pela sua principal rival, a Nike, ainda não tinha sido anunciada.

E agora? O futuro volta a apresentar-se sombrio, mas a gigante germânica não parece disposta a atirar a toalha ao chão. A estratégia que Gulden pôs em marcha quando assumiu o cargo de CEO, em janeiro de 2023, aposta no que a marca tem de melhor — o seu passado, próximo e longínquo. 

Pouco depois da poeira assentar, retomaram a venda das sapatilhas Yeezy. Era preciso limpar o armazém (e a reputação) e comprometeram-se a doar parte das receitas a organizações internacionais que haviam sido “prejudicadas” pelos comentários de West.

Simultaneamente, mergulhou nos arquivos e voltou discretamente a colocar os bestsellers no mapa. As Samba, Gazelle e Superstar (fabricadas com materiais como o couro e que pertencem às gamas mais caras da marca) foram relançadas com novos pormenores. Os modelos renovados não tardaram a invadir as redes sociais e passaram a ser vistos nos pés de todas as influencers. As vendas, claro, dispararam. 

 
 
 
 
 
Ver essa foto no Instagram
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma publicação compartilhada por HAILEY BIEBER STYLE (@haileybieberstyl)

As sapatilhas alinhadas com as tendências retro dos anos 1970 e 1980, consideradas mais elegantes e femininas do que as Air Force 1 (um dos bestsellers da Nike), por exemplo, voltaram ao topo das preferências. Apesar da linha renovada se chamar Originals, os desenhos não são propriamente originais — e essa é uma das principais críticas feita por quem acompanha a evolução da marca. 

As Yeezy, uma verdadeira pedrada no charco em termos de design, não saíram das mentes criativas da adidas. Aliás, nos últimos anos têm apostado essencialmente nas colaborações para ampliar e diversificar portefólio, apesar dos riscos que envolvem —  entre eles a possibilidade de acabarem por delapidar o património histórico da insígnia, como a parceria com Ye demonstrou. 

A tentativa de conquistar a geração Z resultou em lançamentos criados com artistas como Bad Bunny, Pharrell Williams e Beyoncé. Porém, os lucros têm ficado aquém do esperado. Em 2022, as vendas da linha criada com Beyoncé, a Ivy Park, rondaram os 35 milhões de euros, bem abaixo da previsão de 230 milhões da adidas.

Se excluirmos as colaborações, novidades surpreendentes no que toca aos modelos de streetstyle, verdade seja dita, não abundam no catálogo. O revivalismo é o principal mote deste tipo de oferta e para encontrar inovação é preciso direcionar o foco para os esforços de atualização dos clássicos.

As Stan Smith, originalmente produzidas em pele, ganharam uma versão vegan, bem como os modelos tradicionalmente fabricados em camurça (como as Gazelle). As alterações em prol da sustentabilidade e em sintonia com o zeitgeist sustentáveis, não passaram despercebidas às novas gerações.

Claro que o endorsement não oficial de muitas celebridades também ajudou (e muito) a alavancar o fenómeno. As fotos publicadas no Instagram onde as irmãs Hadid, Jennifer Lawrence, Kaia Gerber, Hailey Bieber, Rihanna, Katie Holmes e Olivia Wilde (para elencar apenas alguns nomes) surgem calçadas com sapatilhas adidas são as melhores embaixadoras que poderiam ter.

A turba que exigia à marca que se afastasse de West num dia, saía à rua com umas Samba, Superstar ou Gazelle nos pés no outro. Contra todas as expectativas, as manobras de equilibrista da marca na corda bamba das redes sociais colocaram-na nas hashtags das it-girls que a protegeram da queda e fomentaram a invasão das ruas. A Nike, por outro lado, parece estar a fazer o caminho na direção contrária, ao entrar em cada vez mais balneários. Resta saber quem irá ganhar a corrida.

MAIS HISTÓRIAS DE CASCAIS

AGENDA