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A curiosa história do artista mais ouvido no Spotify — e que ninguém conhece

Produziu mais temas do que Bob Dylan e é mais ouvido do que Michael Jackson. Tornou-se um fenómeno da era do streaming.
Um desconhecido muito famoso.

Os números impressionam: mais de 2.700 temas, 650 pseudónimos, 15 mil milhões de streams e 144 playlists oficiais com 62 milhões de seguidores no total. O compositor mais ouvido no Spotify terá começado a publicar temas na plataforma em 2017, mas manteve-se como perfeito desconhecido até 19 março deste ano.

A identidade do artista sueco que ultrapassou nomes como Britney Spears, ABBA, Michael Jackson, Metallica ou Mariah Carey foi exposta pelo “Dagens Nyheter” — e a revelação deixou o mundo da música em alvoroço. A história de Johan Röhr é apenas o mais recente capítulo da longa investigação do jornal sueco sobre a existência de artistas falsos no Spotify. Em 2022 já havia dado a conhecer a lucrativa relação da Firefly Entertainment com a plataforma de streaming.

A publicação conseguiu obter uma lista com 830 nomes de artistas falsos vinculados, de alguma forma, à editora independente com sede na Suécia. Mais de metade (495) tinham temas em playlists criadas pelo Spotify — plataforma fundada em 2006 na capital sueca por Daniel Ek e Martin Lorentzon.

A revelação deu novas pistas sobre os acordos confidenciais de pagamento de royalties (direitos de autor) da empresa, que inúmeros músicos consideram, no mínimo, duvidosos. O fabuloso — e impressionante— percurso de Röhr na plataforma parece confirmar as alegações que questionam o modelo de negócio do Spotify.

O estranho caso do artista invisível

Não lança álbuns, não faz digressões, não tem uma legião de fãs, não é famoso — e não dá entrevistas. À primeira vista, é difícil encontrar no perfil de Johan Röhr algo que justifique o seu sucesso estrondoso. Pesquisar o currículo do músico, compositor e produtor de 47 anos, baseado em Estocolmo, também pouco adianta. Röhr nem sequer tinha uma entrada na Wikipédia. Foi criada há poucas semanas, mas tem apenas três frases.

Cantou num coral quando era miúdo, no início dos anos 2000 participou no concurso musical sueco Melodifestival e trabalhou como “diretor musical nas digressões de várias estrelas bem conhecidas e em produções de televisão”, descobriu o “Dagens Nyheter”. Agora tem “muito mais sucesso do que qualquer um dos artistas com quem colaborou”.

Já publicou mais de 2700 temas apenas no Spotify. O vastíssimo portefólio de Röhr cilindra os catálogos de alguns dos autores mais prolíficos da história da música. Bob Dylan escreveu cerca de 600 canções, Elvis Costello cerca de 500, compara Jean-Martin Büttner no jornal suíço “Tages-Anzeiger”.

Como consegue ser tão prolífico? Esse é mais uns dos mistérios que o rodeiam sobre o qual muitos se interrogam. A resposta, segundo Büttner, é simples. “Röhr não escreve canções propriamente ditas — ou seja, estruturadas melodicamente, ritmicamente, harmonicamente e liricamente —, mas ‘ambientes sonoros’.”

A música do sueco é baseada em “sons de teclado ondulantes, que ajudam a criar uma atmosfera contida e melancólica”. “Tem um efeito relaxante, mas permanece artisticamente inútil”, acrescenta Büttner.

A associação de artistas noruegueses Norsk Artistforbund levanta outra hipótese. “A música gerada por IA poderá, em breve, dominar o género da música ambiente. Será que as pessoas vão perceber? E, se conseguirem perceber a diferença, será que se importam? Talvez algumas das músicas de Røhr já tenham sido geradas dessa forma?”, interroga o coletivo numa reflexão sobre o atual panorama musical sueco.

Até ao momento, Röhr já lançou temas na plataforma de streaming sob “50 pseudónimos de compositores e, pelo menos, 656 nomes de artistas inventados”, detalha o “Dagens Nyheter”. Minik Knudsen, Mingmei Hsueh, Csizmazia Etel, Adelmar Borrego, Maya Åström, Ralph Kaler, Sherry Novak, Jospeh Turley ou Miu Hayashi — são alguns dos nomes que deve pesquisar para escutar as composições do sueco.

A forma mais fácil de descobrir as melodias no repositório quase infinito do Spotify é juntar-se aos 62 milhões de seguidores que subscrevem uma das 144 playlists onde estão integradas.

“Röhr é responsável por 40 por cento ou mais dos temas de algumas listas, embora sob nomes diferentes”, aponta o crítico e historiador de música Ted Gioia no “The Honest Broker”. A investigação do “Dagens Nyheter” detalha o caso específico da compilação “Stress Relief”, com mais de 1,45 milhões de seguidores, 41 das 270 canções são de artistas falsos criados por Johan Röhr.

As playlists de “música de elevador”

Röhr é um dos 100 artistas mais ouvidos no Spotify de todos os tempos, precisamente graças à sua omnipresença nas listas que muitos detratores colocam na categoria “música de elevador”. “As canções de Röhr não são especialmente memoráveis. Todas as faixas que ouvi soam a música de fundo”, avalia Ted Gioia. “Mas esse parece ser o caminho mais seguro para o sucesso nos dias que correm”, teoriza.

O que uns evitam, outros não dispensam. A prova está nos números: os temas produzidos por Röhr já foram tocados 15 mil milhões de vezes, o que faz dele o artista mais escutado da Suécia atualmente, realça o “Dagens Nyheter”. “É mais ouvido que Michael Jackson, Metallica e Mariah Carey”, acrescenta o jornal, observando que “é a plataforma de streaming que escolhe quem pode ser incluído” nas playlists instrumentais oficiais.

A curadoria, porém, não explica tudo. Na verdade, é apenas um pormenor no contexto de um fenómeno mais vasto, derivado da existência da própria empresa. O advento dos serviços de streaming alterou radicalmente os hábitos de consumo de música: as vendas de discos desceram a mínimos históricos e indústria nunca recuperou verdadeiramente da queda. Os álbuns foram trocados pela liberdade de escolha das playlists.

O alinhamento das canções deixou de refletir o ímpeto criativo de determinado artista. Passou a ser ditado pelo humor, rotinas e necessidades dos ouvintes, incluindo muitos solitários em busca de companhia. A escuta tornou-se uma forma de preencher o silêncio enquanto viajam, trabalham, estudam, treinam ou se ocupam das tarefas domésticas.

A proliferação de listas temáticas como “Piano Pacífico”, “Jazz para estudar”, “Batidas para treinar”, “Música para correr”, “Canções para cozinhar” ou “Alívio do stress” resulta de uma combinação parodoxal: infinitas possibilidades de personalização e maior apetência por compilações hiper padronizadas e “prontas a consumir”. “O ênfase está na experiência [do ouvinte], não no artista que a proporciona”, explica Ted Gioia. O Spotify identificou o fenómeno há muito e arranjou forma de oferecer aos subscritores o que procuram — embora muitos não consigam identificar exatamente o quê, seja o género ou o artista —, lucrando o máximo possível.

“Anytime Soon”, tema de Röhr lançado sob os pseudónimos Ralph Kaler (artista/interprete) e Moa Rønningen (compositor), é apenas um exemplo da alavancagem das playlists. O vídeo partilhado no YouTube a 30 de setembro de 2022 soma apenas 2.855 reproduções. No Spotify, onde surgiu na mesma data, já soma mais de 6,8 milhões de streams.

A diferença abismal não se deve a uma eventual maior procura/pesquisa na plataforma de streaming — até porque Ralph Kaler não é propriamente um nome reconhecido. A presença ou não nas playlists oficiais do Spotify (amplamente recomendadas pelo algoritmo da plataforma, com base no histórico de escuta) pode fazer ou desfazer uma carreira.

Arrecadar milhões ou cêntimos em royalties não depende do reconhecimento do público, bem pelo contrário. “Caminhando na sombra, Johan Röhr segue a bom ritmo para ultrapassar os Beatles”, prevê o “Dagens Nyheter”.

O anonimato dos criadores torna-os mais rentáveis para a plataforma — algo que o próprio Spotify reconhece. “[Se divulgássemos] a lista de artistas que geraram um milhão de dólares no Spotify no ano passado iria surpreender muita gente”, lê-se no relatório anual disponível online. “Muitos não são nomes conhecidos e não precisaram de um ‘hit’ para terem um grande ano.”

Ao que tudo indica, Röhr será um destes “milionários inesperados”, como o Spotify os descreve. Quando já ganhou ao certo ninguém sabe. Entre 2020 e 2022, a empresa em nome individual que detém declarou 6,15 milhões de euros em lucros, aponta o “Dagens Nyheter”. Só no último ano arrecadou 2,85 milhões em royalties, segundo consta no relatório de contas.

Contactado pelo “Dagens Nyheter”, o compositor recusou o pedido de entrevista e não comentou o acordo com a plataforma de streaming, remetendo as questões para a sua editora, a Overtone Studios. A resposta chegou por escrito, assinada pelo CEO da Overtone, Niklas Brantberg. Descreve o compositor como “pioneiro no género da música ambiente, que hoje é extremamente popular” e confirma que lançou temas sob vários pseudónimos.

“Johan Röhr foi o primeiro artista com quem a AP Records [agora Overtone Studios] trabalhou. Muitos dos projetos para os quais Röhr compôs estão inativos e são agora históricos”, recorda. “Defendemos que artistas com talentos diversos devem ter oportunidade de publicar temas com diferentes nomes artísticos – o que é comum na indústria – abrangendo vários géneros e vibrações, com diferentes colaboradores e em diferentes pontos da sua jornada musical”, acrescenta Brantberg.

O Spotify também não se mostrou disponível para conceder uma entrevista ao “Dagens Nyheter”. Ainda assim, comentou algumas das questões abordadas no artigo.

Não impedimos os artistas nem as bandas de lançarem temas com os seus próprios nomes ou sob vários pseudónimos”, clarificou a responsável pela comunicação da empresa nos países nórdicos, Julia Levander.

Relativamente à proliferação de playlists de “música ambiente”, sublinhou que “à medida que a procura por esse tipo de música aumenta, cresce também o número de detentores de direitos e artistas que produzem esse tipo de conteúdo”.

E acrescentou: “Este tipo de música existe principalmente no hub Focus do Spotify, o que limita a competição com os artistas dos géneros musicais mais tradicionais e populares”.

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