fit

Fez 9 cirurgias e quase perdeu uma perna. Agora criou um grupo de ciclistas em Carcavelos

Os membros do Papaléguas Cyclists encontram-se duas vezes por semana para pedalar— e todos se podem juntar.
O fundador com alguns elementos.

Em 1993, Harley Callejas e a então mulher decidiram emigrar da Venezuela para a Suíça. Ambos já tinham contratos de trabalho assegurados, mas os trâmites processuais incluíam uma passagem pelo nosso País, antes de alcançarem o destino final. “Quando cá chegámos, tínhamos encontro marcado com o responsável pelo processo, mas nunca o localizámos”, recorda o barbeiro, atualmente com 50 anos. Dirigiram-se à esquadra da GNR para denunciar o caso e descobriram que não eram os únicos na mesma situação. “Estavam lá dez casais com uma história igual à nossa.”

Perceberam que tinham sido enganados pelo intermediário,  a única opção era regressar à Venezuela. “Enviei uma carta aos meus pais, para os avisar os meus pais, explicar o que tinha acontecido. Pouco depois, passei por uma uma loja e vi que estavam à procura de um barbeiro. Já que estava retido em Portugal,  achei que devia começar a trabalhar”, explica. Decorridos 33 anos, continua por cá.

A estadia começou de forma acidental, porém, a escolha da profissão não aconteceu por acaso. “Tudo começou com o meu avô, que ensinou a arte de cortar cabelo a várias gerações da nossa família —como o meu pai, primo e sobrinho. No total, somos 11 barbeiros.” A herança familiar está à vista no espaço homónimo que fundou em 1998, onde estão expostos instrumentos utilizados pelo avô, há mais de um século.

Harley vivia em Portugal há 13 anos quando tudo mudou. “Uma senhora passou o semáforo vermelho e atropelou-me num cruzamento. Fui projetado cerca de 30 metros”, conta. Naquele dia, sofreu múltiplas fraturas e uma hemorragia interna, que o levaram a passar quatro meses no hospital, tendo sido submetido a nove cirurgias. Seguiram-se cinco longos anos de fisioterapia para recuperar parte do que havia perdido.

“A minha vida esteve em risco. A 12 de junho de 2006, um médico veio ter comigo e disse-me que teria de amputar a perna para evitar que a infeção que tinha piorasse. Pedi para cortar o mínimo possível, mas sabia que iria sobreviver, mesmo sem uma perna”, recorda. Durante o internamento nos cuidados intensivos, assistiu à morte de dois colegas de quarto.

Harley, numa das viagens até Fátima.

“Nos primeiros tempos após o acidente, não conseguia sequer estar sentado, passava dias a fio deitado. A dada altura, algo na minha mente começou a mudar. Aos poucos, passei para a cadeira de rodas e, depois, para as canadianas”. O processo de recuperação foi doloroso e demorou cinco anos. Nesse período, acabou por descobrir o ciclismo. “Comecei numa bicicleta estática, o exercício ajudava-me a manter-me ativo.” Apesar de todo o esforço e empenho, ficou com 25 por cento de incapacidade na perna.

Em 2010, assim que terminou a fisioterapia, comprou uma bicicleta. No entanto, como ainda sentia receio de andar sozinho na estrada, foi avançando nos passeios aos poucos. “Durante dois anos, levava a bicicleta no carro e ia até à ciclovia junto ao Guincho, mas esse percurso começou a ficar demasiado movimentado e cheguei a cair três vezes”, recorda. Decidiu mudar de estratégia e passou a fazer os passeios acompanhado por amigo. “Íamos sempre preparados para evitar acidentes, até que finalmente perdi o medo.”

Hoje, a sua principal missão é partilhar a vontade de viver, desígnio que o levou a fundar o Papaléguas Cyclist. “Amigos e clientes começaram a aderir à ideia e decidimos oficializar o grupo em maio, criando uma página no Instagram”, detalha.

“Quero mostrar que as pessoas com limitações são capazes, sinto que posso ajudar quem estiver numa situação semelhante à que vivi”, confessa. O nome do grupo surgiu durante o corte de cabelo a um jovem cliente. “O miúdo estava a ver a desenhos animados e, às tantas, disse-me que era tão rápido como o Papa-Léguas. Achei que a comparação fazia todo o sentido e acabou por ficar.”

Desde então, Harley já fez três peregrinações a pé até Fátima e duas de bicicleta. Os encontros do Papaléguas Cyclists acontecem às terças e quintas-feiras, com partida às 21 horas, junto à sua barbearia, em Carcavelos. “Os percursos são planeados diariamente, conforme a disponibilidade dos participantes”, acrescenta. Atualmente, o grupo conta com cerca de 20 membros, com idades entre os 15 e os 70 anos, e está aberto a quem queira juntar-se, bastando enviar uma mensagem privada pelo Instagram.

A camisolas oficiais do grupo.

MAIS HISTÓRIAS DE CASCAIS

AGENDA